Durante anos, o Brasil acompanhou uma discussão que movimentou sindicatos, trabalhadores e tribunais: afinal, o saldo do FGTS deveria ser corrigido pela Taxa Referencial (TR) ou por um índice inflacionário real, como IPCA ou INPC?
Trabalhadores, sindicatos e advogados sustentavam que a TR não repunha a inflação e, portanto, feria o direito de propriedade. A solução defendida era a substituição da TR por índices como o IPCA ou INPC, que medem a variação real dos preços.
O tema gerou uma avalanche de ações coletivas e individuais, até que em 2024 o STF colocou um ponto final na questão. No ano seguinte, um acórdão do TRF1 apenas aplicou esse entendimento, consolidando a jurisprudência e encerrando definitivamente as esperanças de revisão judicial.
O problema da TR
- A TR (Taxa Referencial) foi criada em 1991 e usada tanto para a poupança quanto para o FGTS.
- Nos últimos anos, passou a ficar zerada em diversos períodos, mesmo diante de inflação significativa.
- Isso gerava uma distorção: enquanto a inflação corroía o valor real da moeda, os saldos do FGTS permaneciam praticamente congelados.
Os trabalhadores alegavam que essa situação representava uma verdadeira perda patrimonial e uma afronta ao direito constitucional de propriedade.
Fundamentação do Relator (TRF1, 2025)
Em decisão de 2025, o relator rejeitou embargos de declaração e reafirmou que não havia omissão, obscuridade ou contradição no acórdão anterior. Disse expressamente que o que existia era apenas inconformismo da parte recorrente, o que não autoriza o uso de embargos.
O voto ressaltou que:
“Todas as questões ventiladas nos autos foram suficientemente examinadas e resolvidas, não se podendo confundir contrariedade das partes em relação à conclusão da Turma julgadora com eventual omissão ou obscuridade no acórdão hostilizado.”
A consonância com a jurisprudência
O relator frisou que não havia espaço para divergência no âmbito do TRF1, porque tanto o STJ quanto o STF já haviam pacificado a questão:
- O STJ editou a Súmula 459, reafirmando que a TR é o índice aplicável ao FGTS.
- O STF, na ADI 5090/DF, consolidou que a escolha do índice é decisão legislativa, não podendo ser substituída por decisão judicial.
Ou seja, o acórdão do TRF1 foi um reflexo direto da jurisprudência superior.
As razões de fundo do STF
Ao decidir a ADI 5090, o STF apresentou fundamentos que vão além do aspecto econômico:
- Competência do Legislativo
- Definir o índice de correção é escolha de política legislativa.
- Alterar a TR significaria o Judiciário usurpar papel do Parlamento.
- Direito de propriedade não é absoluto
- O trabalhador tem direito ao FGTS, mas não a um índice específico de correção.
- A Constituição não garante reajuste inflacionário pleno para esse fundo.
- Ofensa reflexa
- A eventual perda inflacionária seria uma ofensa indireta, e não direta, à Constituição.
- Questões de cálculo ou escolha de índice pertencem ao campo infraconstitucional.
- Função social do FGTS
- O FGTS não é apenas poupança individual: financia habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana.
- Uma alteração abrupta no índice traria impacto bilionário, comprometendo políticas públicas essenciais, muitas delas voltadas a populações vulneráveis.
Por que não havia violação constitucional
O STF rejeitou a tese de inconstitucionalidade porque entendeu que:
- O direito de propriedade sobre os depósitos do FGTS existe, mas está sujeito às regras legais.
- A TR pode ser discutida como parâmetro econômico, mas não como violação constitucional direta. Ela pode não repor a inflação, mas isso não significa inconstitucionalidade.
- O princípio da separação dos poderes impede que o Judiciário substitua a opção feita pelo legislador.
- Alterar o índice seria tarefa do Congresso Nacional, não do Judiciário.
O acórdão do TRF1 em 2025
O julgamento de março de 2025 não inovou: limitou-se a aplicar a tese firmada pelo STF. O relator destacou que não havia contradição, omissão ou obscuridade na decisão anterior e que a inconformidade dos autores não autorizava novo recurso.
Esse acórdão representa a consolidação prática da decisão do STF no cenário nacional: processos suspensos foram julgados improcedentes em efeito cascata.
Casos que ensinam: a lição é clara
Este julgamento deixa importantes lições jurídicas e sociais:
- Direito de propriedade: não é absoluto; pode ser conformado pela lei, especialmente quando se trata de patrimônio vinculado a políticas públicas.
- Ofensa reflexa: nem toda perda econômica é uma violação direta da Constituição.
- Competência do Legislativo: cabe ao Congresso alterar índices econômicos; o Judiciário deve respeitar essa escolha.
- Função social do FGTS: o fundo não pertence apenas ao trabalhador, o fundo tem caráter coletivo, financiando projetos habitacionais e de saneamento que atendem milhões de brasileiros.
Dimensão humanitária e social
Um aspecto muitas vezes esquecido no debate é que o FGTS vai além da proteção individual do trabalhador. Ele é uma ferramenta de justiça social.
- Habitação popular: milhões de famílias de baixa renda dependem dos programas habitacionais financiados pelo fundo. Programas de habitação popular financiados pelo FGTS reduzem o déficit habitacional.
- Saneamento básico: investimentos em esgoto e abastecimento reduzem doenças e elevam a qualidade de vida em áreas vulneráveis, tendo impacto direto na saúde de comunidades carentes.
- Infraestrutura urbana: o fundo também ajuda no desenvolvimento das cidades. Obras de infraestrutura custeadas com recursos do FGTS promovem desenvolvimento regional e inclusão social.
Ao manter a TR, o STF considerou que um reajuste bilionário poderia comprometer esses programas. Essa é uma decisão que, ainda que frustrante para trabalhadores individualmente, preserva políticas que beneficiam milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Conclusão
O julgamento sobre a TR no FGTS encerrou uma das maiores disputas judiciais recentes.
Mais do que uma questão financeira, revelou a importância de respeitar a separação dos poderes, a função social dos fundos públicos e a compreensão de que o Direito de propriedade não é absoluto.
Foi uma decisão que priorizou a coletividade e a estabilidade institucional em detrimento de ganhos individuais imediatos. Um caso que, sem dúvida, ensina muito sobre os limites do Judiciário e o papel do Direito na proteção de políticas públicas.